01 novembro 2006

ENGANO

O ruído dos motores tornara-se ensurdecedor. Depois, de súbito tudo ficou em silêncio.
Foi à janela e olhou.
Lá em baixo os carros tinham parado, exactamente em frente à mansão. Abriram-se portas e as fardas começaram a sair, algumas de bota alta, olhando para cima.
Recou um pouco, para não ser visto lá de fora. Encostou o cano Stein ao canto da janela e, aguentando com firmeza na anca, atirou a primeira rajada num movimento sábiamente circular. E continuou.
Enganara-se. Pela primeira vez.
Vinham apenas dizer-lhe que fora eleito Presidente.

Mário-Henrique Leiria
Escritor: 1923 – 1980

30 outubro 2006

DIA DAS BRUXAS

Francisco – Dr. Gonçalo Já sabe da novidade que corre aqui na comarca?

Gonçalo – Não! tenho ando muito atarefado com um processo absurdo de divórcio.

Francisco – Pois, dizem que a esposa do Sr. Dr. tem um valente par de cornos, e que a outra fulana é um fenómeno.

Gonçalo – Não, não é possível não tenho tempo nem para sair à noite, e todavia somos um casal exemplar e, sempre respeitei a minha mulher.

Francisco – Pois mas o problema não me parece que seja com o Dr., é que o colega que anda com a sua esposa. Tem um novo avião e é boa como o milho.

de repente fez-se silencio na sala e um estampido ecoo prolongadamente

Pummmmm

27 outubro 2006

VERTIGENS

Tenho vertigens
O mundo roda ao contrário
Farto de horário
Esqueço meu fadário
Dou-lhe a volta
Por qualquer lado
Inquieto-me com o quieto
Desassossego-me com o sossego
De alturas poucas loucuras
Tenho vertigens
Não gosto de gaivotas
Nem de aves raras que me rodeiam
tenho vertigens

Matosantos

23 outubro 2006

FRIO RIO

Frio rio
Que corra sobre a ponte
Frio rio
Que leve amor a monte
Frio rio
Que solto chegue ao mar
Frio rio
Que a tua violência não me confronte
Frio rio
Que quero me leve a lado algum
Frio rio

Matosantos

22 outubro 2006

CARTA DE UM MARGINAL

Um dia pego na estrela que trago no coração
e atiro-a à cara de alguém...

Um dia agarro todos os meus sonhos
e todos os meus sorrisos
e deito-os num poço,
já que ninguém os quer...

Um dia junto as pétalas das rosas
e a ternura que trago nas minhas mãos
e ponho-as às costas duma pessoa qualquer...

Um dia apanho o meu olhar mais doce,
o meu búzio mais lindo
e a concha do mar da minha infância
e deixo-as morrer de fome...

Um dia vou dentro da minha alma
tiro-lhe todos os tesouros
e os mais lindos poemas que trago comigo
e rasgo-os diante duma multidão...

Um dia as asas dos meus pássaros
baterão com tanta força
que irei com elas a voar... voar...

Um dia drogo-me por saudade
da minha ternura perdida,
violento-me e violento
uma menina de tranças louras...

Um dia roubo um banco,
compro uma mota
e fujo para o fim do mundo...

Ai! Dou um beijo a qualquer desconhecido.
Aquele beijo que sempre quis dar...

Julio Roberto

20 outubro 2006

INTENSIDADE

Pensei longamente nas pernas,
Como era frágil a cintura.
Percorri lentamente os fundilhos,
Escorreito, deslizei o fecho écler
E a braguilha ficou escancarada.
Um odor intenso invadiu-me as narinas,
O ambiente estava cada vez mais escaldante.
O ferro de engomar estava ligado.


Matosantos

ALMAS QUEIMADAS

Os impropérios caíam como bombas em Bagdad
Milhares de vísceras dilaceravam a bigorna sensitiva
Sonotone sem causa nem efeito,
O sangue escorria peito feito
Em coração dilacerado

Quem me dera ser um bulldozer para cobrir o negro entulho
De mil raivas, odiosas, sem odes nem rimas
Bagdad está em my bad de túnica branca,
Manta negra Antártida coberta de fuligem de almas queimadas
E os impropérios caíam como bombas em Bagdad


Matosantos

19 outubro 2006

PRESERVATIVOS

Sempre tive
peúgas para dormir
sempre tive
calças de pijama
no inverno
calções no verão
ontem esqueci-me,
esqueci-me dos preservativos


Matosantos

QUASE PERFEITO

Adoro a forma preenchida com tacteias
as suaves formas do manequim,
os altos-relevos frontais,
os arredondados píncaros traseiros.

Adoro a forma curta dos teus dedos
a escrita sinusoidal das palavras
o deambular dedilhado das mãos.
É triste não tocares guitarra.


Matosantos

18 outubro 2006

ESPUMA BRANCA

Festejava com exaltação,
A taça de espumante, suave
Vertia-se branca cândida
Corpo abaixo
Copo abaixo
A caixinha estava aberta
Escancarada para o momento final
Num ápice caiu na zona mágica
A máquina de lavar
Começou a funcionar.


Matosantos

16 outubro 2006

VAZIO

Acordo vazio
A dor dilata-me os olhos…
O cansaço da perda cai-me sobre as costas...
A nauseabunda dor da recordação

Ferve nas minhas veias...
A noite já não é tranquila,
Ela: um buraco eterno no silencio convida ao sofrimento,
Alimentando inquietantes pensamentos
E tudo o que enxergo é a tua figura enroscada noutra felicidade.


Matosantos

15 outubro 2006

NIM

A árvore Nim vive entre 100 a 200 anos, crescendo até 30 metros de altura. Ela começa a produzir frutos depois de alguns anos e torna-se totalmente produtiva depois de dez anos. O nome em sânscrito para o Nim significa ‘o curador de todos os males’.

Nim em Portugalês significa governo

13 outubro 2006

ACABOU-SE A CRISE II

Oh mãe, oh mãe hoje é dia do azar ou é dia dos enganos?

Ups!

ACABOU-SE A CRISE I

Yupi, yupi como estou feliz!
Disseram, os do governo que a crise acabou, yupi com estamos todos felizes porque amanhã é fim de semana e, os bancos, as finanças, os credores e outros, vão de fim de semana.
Yupi acabou-se a crise... até segunda feira.

10 outubro 2006

AMOR & SEXO

“O que o amor e o sexo têm em comum é o facto de hoje serem causas individuais, qualquer tentativa de partilhar estas sensações com alguém estará condenada ao fracasso e só fará explodir o ódio.”
Matosantos

08 outubro 2006

06 outubro 2006

MODA LISBOA



Pois é!
Os nossos estilistas assim o dizem:
- Nós queremos cabides para passar os nossos trapos.
Espantado observa o indigente:
- Então e as gajas boas?
- E esse filão narcísico-juvenil?

05 outubro 2006

ESPERANÇA VIII


Esta é a verdadeira esperança que nos falta.

Um país com poucas mulheres grávidas é um país desafortunado.

O bem-estar ajuda, constatei em Tenerife que também é Espanha mas, sem “Jardinzes”.

04 outubro 2006

LEISEKA

Tomava um duche rápido quando o sabão e eu escorregamos.

Seu Cabrão, ignorante filho da …. não sabe ler?

Alguém asseverou hitleriante.

A marca do sabão era:

- LEISEKA

02 outubro 2006

UPS DISSE EU

Num tuca truca de ocasião falo eu o patrão e o ladrão sobre o estado da nação, e diz-me o ladrão, homem já entrado de muitas precárias:

- Ó meu senhor, já viu se prendessem todos os ladrões não tínhamos quem nos governasse! Como a minha ladroagem é miúda, de quando em vez lá vou entrando, sou do povo sou fodido.

Ups disse eu.

01 outubro 2006

ESPERANÇA VII

Há uns meses atrás antes de celibatar-me temporaria e involuntariamente apregoava eu a esperança, qual varina em desassossego tentando vender o seu peixe.

Porra estamos num pais de cegos? Será que a alta comandita não enxerga a corrosão da esperança.

Por aqui na minha zona, onde vou atacando na procura de esperanças, são em média diária nos últimos tempos, 50 tugazinhos desesperados quase todos, tentando tirar o seu passaportezeco para a Nova Esperança. É alarmante ou é só uma ligeira sensação de casual desfile de passerelle.

10 junho 2006

PORTUGAL, PORTUGAL

Tiveste gente de muita coragem
E acreditaste na tua mensagem
Foste ganhando terreno
E foste perdendo a memória

Já tinhas meio mundo na mão
Quiseste impor a tua religião
E acabaste por perder a liberdade
A caminho da glória

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Tiveste muita carta para bater
Quem joga deve aprender a perder
Que a sorte nunca vem só
Quando bate à nossa porta

Esbanjaste muita vida nas apostas
E agora trazes o desgosto às costas
Não se pode estar direito
Quando se tem a espinha torta

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Fizeste cegos de quem olhos tinha
Quiseste pôr toda a gente na linha
Trocaste a alma e o coração
Pela ponta das tuas lanças

Difamaste quem verdades dizia
Confundiste amor com pornografia
E depois perdeste o gosto
De brincar com as tuas crianças

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Ai, Portugal, Portugal
De que é que tu estás à espera?
Tens um pé numa galera
E outro no fundo do mar
Ai, Portugal, Portugal
Enquanto ficares à espera
Ninguém te pode ajudar

Jorge Palma

06 junho 2006

ESPERANÇA IV

O pessimista queixa-se do vento, o optimista espera que ele mude e o realista ajusta as velas.


Willian George Ward

02 junho 2006

TROVA DO VENTO QUE PASSA

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.


Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.


E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.


Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.


Manuel Alegre

30 maio 2006

VERSOS A UM COVEIRO

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!
Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A génese de todos os abismos!
Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais:
Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números
A tua conta não acaba mais!

Augusto dos Anjos

CALCANTES V


Silenciosamente caminhamos para a eternidade

29 maio 2006

28 maio 2006

NÃO ESTOU

Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o verão quente do dia,

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida...
Não estou pensando em nada.
E como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada...

Álvaro de Campos

26 maio 2006

DES - CONFORTO

À conversa com o meu mordomo Sebastião, falamos dos seus problemas financeiros, e do seu primo Teodoro.

Resignado com a situação de Teodoro, não vislumbro nenhuma solução para a situação financeira do primo de Sebastião.

Habitualmente tenho um Stock de canas de pesca, e de quando em vez ganho paciência para dar umas lições de como pescar. Não é que a pescaria lá resulte o suficiente para sobreviver mas, vale a intenlição.

Sebastião serviu-me para pequeno-almoço, compota de Abacaxi com torradas de pão saloio, e um sumo de pêra, uma delícia.

De barriga cheia voltamos ao tema Teodoro e às notícias que fazem hoje manchete nas televisões.

O Sr. Presidente da nossa ainda república portuguesa está desconfortado com a pobreza nacional e vai iniciar um périplo para dar a conhecer o que toda a gente sabe inclusive o meu mordomo Sebastião, que Teodoro é pobre de alma, espírito e de nacionalidade, nasceu e não evoluiu nesta terra à beira mar plantada como milhares de concidadãos com falta de oportunidades. Será que esta visita ao mundo pobre é solução? Então Sr. Presidente da Republica quando o Sr. foi Primeiro-ministro deste pais o que fez ao dinheiro da comunidade? Distribuiu pelos menos favorecidos? Ou ajudou a fundar o grupo económico Falidos de Portugal, SA.

Por causa da sua visitinha tenho hoje o mordomo Sebastião em sobressalto, provavelmente terei de o despedir ao fim de muitos anos de bons préstimos, e terei de acompanhar o Exmo Sr. Presidente na sua visitinha a ver se consigo um mordomo novo que não se iluda com as suas benesses, graças a Deus.

Marquês de Sábado

25 maio 2006

FEIRA DO LIVRO


Estamos na semana das feiras do livro. A sua decadência é sintomática.
Provávelmente será necessário haver feiras populares do livro com o Emanuel, o José Cid, o Clemente, Sócrates o irmão de Séneca Carrilho, juntar-lhes Cherne grelhado, Sardinhas, Koiratos (o K é para lhes dar um ar de modernidade) e santos populares, e no final comprar Los bellos Durmientes de António Gala para ver se nos resta tempo de encenar uma peçazinha no Parque Mayer mesmo juntinho à estátua de Frank Gehry.

MÃOS FRIAS CORAÇÃO... ( II )


Sebastião Salgado

Será o tempo que gela ou a alma que arrefece?

24 maio 2006

A RAPARIGA COM MUITOS OLHOS

Um dia no jardim
fiquei muito espantado
encontrei uma miúda
com olhos por todo o lado.


Era de facto encantadora
(e também assustadora!);
e, porque tinha boca para falar,
pusemo-nos a conversar.

Falámos sobre flores
e das suas aulas de poesia,
e dos problemas que teria
se tivesse miopia.

É óptimo namorar
alguém que tanto nos olha,
mas se desata a chorar
apanhamos uma molha.

Tim Burton

20 maio 2006

MULHER II


Canciano - 1990


A OBESIDADE E "O GULA"

Todas as moedas que estacionavam na gaveta tinham um fim triste.
Chupas de caramelos, amendoins com açúcar, gelados caseiros de baunilha e outras iguarias faziam a tentação do Jonas.
Dia após dia o rapaz alargava e a gaveta da mercearia mingava. Pagavam as favas os empregados, porque o menino era insuspeito.

Com 10 anos de idade pesava quase 100 kg, era o animal do circo escolar.
Na sua passada titubeante, ouvia em uníssono a voz dos fantasmas brancos.
Lá vem o GULA.

19 maio 2006

AOS COELHOS


Auto-retrato

Fernando Pessoa está sentado no Majestic a escrever a ode marítima do Campos.
O Homem-Aranha, disfarçado de Peter Parker entra no café para mijar, dá de caras com o poeta. Lembra-se do penico que este lhe atirou e, maldoso, dá um encontrão à mesa do Fernando, fazendo o galão entornar-se sobre o manuscrito, inutilizando-o.
Como deixou cair os óculos ao tentar salvar o poema, o Fernando não reconhece o Homem-Aranha e chama-lhe cabrão.
enquanto Peter Parker mija e se ri, ou se ri e se mija, Pessoa vai escrever para casa.

Rui de Souza Coelho

16 maio 2006

O CORVO

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –

Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,

Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."

Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivesse palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento

Edgar Allan Poe

15 maio 2006

PENSADOR

...Há assassinos que não se arrependem
há tantos pensadores que nunca aprendem
e há quem insista sempre aprender
mas não quer pensar...

Jorge Palma

12 maio 2006

PRINCESA


Cornell Medici - Princesa

Sublime voa a princesa encarnada
Sobre um campo de helianthus
Caudatus estende-se o véu
No horizonte onde o mar se encontra
Onde nem sempre é azul de felicidade
Onde nem sempre é vermelho de sangue

Sublime voa a princesa encarnada
Sobre um campo verde de esperança
Viva de seio coração útero
Laqueado de orgulhos perenes
Na beleza excelsa de Afrodite
Alta altiva altruísta atitude

Sublime voa a princesa encarnada
Sub o meu olhar estarrecido
De encantamento gigante
De trevas feitas primavera
De magia negra feita felicidade
Sublime voa a princesa encarnada

Matosantos




09 maio 2006

TOXICIDADE



... E chega a polícia bacteriológica
Com um toque de classe impõe a sua lógica
E parte-se ao meio a cidade
Metade será caos a outra eternidade

Tem-se a vertigem a cor do vácuo
Comunicar sem som sentir ruído branco
Esquecida que foi a origem
A arder num fogo fátuo à venda em Porto Franco

Toxicidade
ar do deserto
Asfixia devagar
Toxicidade num céu incerto
Chuva acre sem molhar
Vento morto a enterrar

Rui Reininho


03 maio 2006

AFRÓDICOS


O cão de guarda tinha mais de quatro anos de serviço. O seu consolo era a visita, em tempo destinado, de uma alma canina caridosa porque de resto a sua fiel companheira era uma corrente pesada, agrilhoada ao pescoço. Branco de bom porte, denunciava a sua função. Ladrar, ladrar até mais não.

Depois de uma noitada a testar o chassis num troço do Rally de Portugal a “Fina-flor da Chiba” foi reparar a viatura à oficina de assistência. Eram para ai??? Muitos. Assistentes, bebentes, dormentes e até afródicos.

Para consolo do cão um dos afródicos aproximou-se do animal, que feliz lhe saltou para a perna, pensando possivelmente que era para a espinha. Foram horas de puro e duro prazer. O afródico dava a perna, e ele delirava, a assistência já não queria saber da ferrugem do chassis. A cena hardcore empinava o olhar da assistência.

Algum tempo depois o cão cai inanimado. Estava morto, morto por prazer, morto por amor ao osso da perna.

A consternação foi geral.

Alguém dias mais tarde sugeriu:

- Quando partires a perna, diabo surdo e mudo, pede ao cirurgião ortopedista para te colocar um memorial de platina com os seguintes dizeres:

- Aqui morreu de prazer um apaixonado por este pedaço.


02 maio 2006

VAZIO

Se muita gente sentisse o que sinto
O céu estaria encerrado para obras
As almas do purgatório teriam fugido
E no inferno não haveria homens nem cobras
Os peixes morreriam de falta de ar
Os tubarões de sede
Para os barcos, não haveria mar

Se muita gente sentisse o que sinto
Os relógios andariam ao contrário
Empacotados num armário
Mil homens zupavam entre si
Na mingua de um amor
Não havia partos sem dor
As maternidades fechavam
Os amantes não amavam
Os sinos não dobravam

Se muita gente sentisse o que sinto
A flor não teria cor
O amor não teria flor
O sorriso não se abria
A criança não corria
A vida era vazia
Se muita gente sentisse o que sinto

Matosantos

01 maio 2006

1º DE MAIO


Foto de Sebastião Salgado
Plantação de cana de açucar
Sebastião Salgado fotografa faces de um mundo esquecido pela sociedade de consumo.

28 abril 2006

PÂNICO

Os tentáculos de Alien envolviam-me o pescoço, as quatro lâmpadas fluorescentes brancas que iluminam a sala mantêm-se alinhadas a assistir ao sufoco da tortura. Penso positivo. O barulho das ferramentas soa a Range Against Machine – Calm Like a Bomb com imagens de Slipknot.

E depois? E depois aquela alfinetada dolorosa, e ela sorri com aquele ar de felicidade sádica. Os zombies pululam no tecto branco, as pernas tremem, os suores frios encharcam o imaginário, as cândidas palavras não permitem dar troco, os grunhidos guturais não têm sentido. São 48 minutos que quase levam à morte.
Mas sobrevivi, e hoje penso que nada de transcendente existe no mistério das mortes no dentista. Alfred Hitchcock, realizaria um novo filme com o titulo “Pânico”.